terça-feira, 7 de agosto de 2018

A Coisa


Sílvia chegou em cima da hora. As aulas têm início as 7:15. Os professores e demais funcionários eram obrigados a chegar uma hora antes. Sílvia para em frente a sala dos professores, olha no relógio marcando 6:20, respira fundo abre a porta e entra. A sala estava cheia.
O professor de matemática terminava de corrigir as últimas provas, do outro lado da mesa o professor de história discutia com o professor de geografia sobre as diferentes abordagens políticas de seus candidatos. Sílvia vai até a mesa onde estão três garrafas, duas de café, uma contendo café com açúcar e outra sem açúcar. Do lado uma garrafa com chá. Ela escolhe a garrafa contendo o café adocicado, na correria ela esquecera de tomar café da manhã. Ela já estava de licença a mais de três meses. Todos se aproximaram e a cumprimentaram dando boas-vindas.
- Bem-vinda grande guerreia -  comentou a professora de artes.
- Bem-vinda de volta, você fez falta. – Disse o professor de português.
- Precisando de qualquer coisa Sílvia, pode contar com a gente.
- Obrigada gente, creio que irei fazer a vida de todos melhores – Disse Sílvia com um sorriso forçado no rosto.
O relógio marca (7:15) e uma sirene toca avisando o começo das aulas, um alvoroço acontece, as crianças levantam e sobem as escadas, umas animadas e outras nem tanto.
- Bem... mais um dia começando. Não vejo a hora do final de semana chegar para tomar aquela cervejinha esperta – comentou o professor de química esticando as costas. -  Esses meninos ainda me matam.
- Cuidado para não beber demais, senão vai perder a moral na hora de pagar sapo nos alunos. – O professor de matemática metido a bonachão.
Sílvia foi para a sua sala. Não era uma sala muito grande, tinha um tamanho relativamente médio, era do lado da sala da coordenadora pedagógica, ela entrou colocou sua bolsa na mesa e ligou o computador. Seu médico sugeriu que ela parasse de dar aula e fosse para uma área sem muita exposição. Ela então assumiu a vice coordenação pedagógica, na qual seu trabalho era auxiliar as crianças com problemas de estudo. Ela se sentou, tomou dois comprimidos e foi checar o e-mail.
O colapso nervoso já havia acontecendo fazia algumas semanas, ela estava sob stress, ela reclamava de as vezes ver coisas, escutar coisas, mas o auge do colapso aconteceu enquanto ela dava aula, ainda não se sabe a real causa. Ela estava falando sobre a vida de Edgar Allan Poe:
- Edgar Allan Poe, poeta, escritor, crítico e contista norte-americano, nasceu em janeiro de 1809 em Boston, Massachusetts -1849) e é considerado o pai e mestre da literatura de horror. Órfão aos dois anos, foi criado por um rico comerciante do estado da Virgínia. Iniciou sua esmerada educação na Inglaterra e na Escócia, frequentou a Universidade da Virgínia onde passou a dedicar-se mais aos jogos e à bebida, não aos estudos. Isso fez com que rompesse suas relações com seu tutor. Em 1827, lançou seu primeiro livro de poesias. Expulso da Academia Militar de West Point, entregou-se totalmente à literatura, publicando contos em revistas. O poema "O Corvo", de 1845, é talvez o mais famoso poema da literatura dos Estados Unidos. Alcoólatra, encontrou no casamento com sua prima Virgínia, de apenas 13 anos, forças para lutar contra o vício e aumentar sua produção literária. Com a morte de Virgínia, vitimada pela tuberculose como seus pais, voltou ao alcoolismo, passando a viver em constante embriagues. Em 1849, passa mal em uma taberna de Baltimore e, mesmo socorrido, vem a falecer.
- Ele foi responsável por trazer o horror e o começo da história policial, seus contos eram marcados por sinais de loucura e uma morbidez, ele começava sempre seus textos com.  – Nisso Sílvia sentiu uma leve tontura, segurou na mesa, nisso os colegas começaram a se aproximar
- Fessora, você está bem?
- Eu acho que vou desma... – Sílvia cai no chão. Logo depois ela apenas lembra de estar no hospital com um monte de cartões desejando uma feliz recuperação, feito por alunos e professores.
A escola tinha turmas de 5ª até a 8ª serie, o recreio começava as 10:00 e terminava as 10:20. O pátio era sempre barulhento. Havia dois pátios, um pátio coberto onde ficava a biblioteca e um pátio aberto onde ficava a quadra poliesportiva. Algumas crianças jogavam futebol, outras conversavam e algumas mais reclusas ficavam na biblioteca.  Sílvia desceu as escadas, ela sempre gostara de passar um tempo na biblioteca, rever os antigos clássicos da literatura.
- Olá professora Sílvia – comentou Jonas, um bibliotecário alto de óculos fundo de garrafa – Fiquei sabendo agora pouco que você se recuperou de um colapso nervoso.
- É ainda estou me recuperando. Não sou mais professora, agora mexo com a parte de coordenação pedagógica.
- E o que te traz aqui no mundo magico da literatura?
- Ah Jonas... você sabe, minha paixão está nos livros.
- Fique à vontade professora, ops desculpe, coordenadora.
- Não, não. Pode me chamar de professora, eu não me importo.
Ela entrou no primeiro corredor e foi andando olhando as prateleiras, ela sempre gostou muito de ler, desde pequena ela tem lembranças de sua avó dar de presente o livro Oliver Twist do Charles Dickens. Ela se emocionou com a triste história do pequeno Oliver. A história era um retrato de uma Inglaterra vitoriana, no ápice da revolução industrial. O autor relatou a pobreza e a hipocrisia das famílias mais abastadas. Achava um absurdo Noé Claypole no final ter se dado bem. Ela queria que Oliver fosse seu irmão e amigo. Quando ficou mais velha começou a ler historias mais pesadas e mergulhou de vez nos clássicos. Ela já não pertencia mais a esse mundo comum. Ela agora conhecia o mundo da literatura.
A maioria dos livros na prateleira ela já havia lido. Ela matou a saudade lendo um livro dos melhores contos de Edgar Allan Poe, o seu favorito ainda era Gato Preto. Ela teve a mesma reação de medo quando o personagem matou a sua mulher e escondeu na parede.
“Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois, tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão...”” - Ela foi interrompida pelo sinal avisando que o recreio tinha acabado. Ela guardou o livro na prateleira e subiu para sua sala.
Semana seguinte foi anunciado que haveria um evento cultural depois do feriado. Cada turma deveria se juntar para elaborar um projeto que envolvesse música, poesia e literatura. Sílvia estava animada, sua cabeça imaginava várias coisas legais que poderia dar certo.
- Quem sabe uma peça de teatro de Dom Casmurro, uma apresentação de ballet....
Faltando dois dias para o famoso dia cultural uma notícia atrapalhou tudo, o computador pifou e não ficou pronto a tempo as fixas de avaliação dos eventos. Como a Sílvia estava responsável pela coordenação do evento, ela havia insistido para tomar essa posição, ela viu esse problema como apenas um imprevisto e ela mesmo decidiu resolver.
- Tem certeza? Você vai ficar aqui até mais tarde, quem sabe virar a noite. – Disse a coordenadora principal.
- Eu dou conta do recado, não se preocupe.
- Mas e sua doença? Sabe que não pode se esforçar muito.
- Não tem problema, terei meus remédios, e fazendo algo que gosto não há o que me preocupar.
- A noite pode ser bem solitária.
- Não se preocupe, eu trabalho melhor sozinha.
Sílvia foi para casa e voltou as 17:00. A tarde a escola também funcionava para as turmas pré escolares do jardim de infância até a 4ª serie. Como era véspera de feriado havia uma felicidade no ar. Ela parou seu Sendeiro verde perto da praça que ficava em frente ao colégio. Desceu com as folhas e materiais e entrou pela entrada lateral. Sorriu para o zelador.  Ela desviou dos alunos que corriam brincando de pique pega. Subiu as escadas até a sala dos professores e lá ficou.
Já estava escurecendo. O relógio marcava 20:00, as luzes da escola estavam todas apagadas com exceção da luz da sala dos professores.
- Está tudo bem ai senhora? – Disse Manuel o vigia noturno. Ele segurava uma lanterna e um bolo de chaves pendurada na calça. – Precisa de alguma coisa?
- Está sim, obrigada por perguntar.
- Estou perguntando, pois irei fechar a escola e ficarei do lado de fora vigiando a rua, então quando terminar de sair, me dá um toque que abro o portão.
- Que bom que você falou, poderia me passar as chaves das salas e da biblioteca?
- Claro, aqui está.
Manuel então saiu pelo portão e trancou com um cadeado e sentou em sua cadeira de plástico e colocou os fones de ouvidos para assistir ao jogo São Paulo e Vasco. O celular de Sílvia despertou notificando que estava na hora de tomar o remédio. Ela então procurou na bolsa e não encontrou.
- Droga esqueci o remédio em cima da bancada de casa. – Sílvia irritada jogando a bolsa na mesa.  -  Ah, mas deixa para lá. Estou bem, afinal já estou quase terminando.
O relógio na parede marcava 22:30, Sílvia estava empenhada no serviço, não notou o tempo passando. Ela lembrou que existe um livro na biblioteca sobre a literatura do Século XIX, que irá enriquecer ainda mais o projeto.
Ela resolveu ir até a biblioteca, desceu as escadas e passou por uma sala vazia. Então um som que fez ela gelar a espinha, era um som como se fosse barulho de algo rangendo.
- Deve ser alguma janela aberta ou talvez o vigia. É deve ser isso. -  Sua mente a confortou. Ela continuou andando, entrou na biblioteca agora vazia e assustadora. Pegou o livro e foi andando de volta. Ela passou por uma sala e a luz estava acesa e a janela aberta.
- Puxa vida. Esqueceram de apagar essa luz. Esse pessoal não sabe que a luz está cara? Segunda Feira vou convocar uma reunião para falar disso. – Ela fecha a janela e apaga a luz.
Ela segue seu caminho. Ao virar um corredor escuta barulho de passos e vê pelo canto do olho um vulto correndo. Isso faz seu coração acelerar. Ela tenta lembrar dos exercícios de pânico que ela aprendeu com a psicóloga.
- Está tudo bem, é apenas coisa da minha cabeça, esqueci de tomar a dose é isso. Amanhã eu tomo e está tudo bem.  – Ela abre os olhos e está tudo como devia estar. Ela ainda escuta um barulho de rangido, como se tivesse algo sendo arrastado. Ela volta correndo para a sala e pega seu celular, ele está com 1% de bateria. Ela tateia na bolsa procurando o carregador, mas não encontra, havia esquecido em casa, provavelmente do lado do remédio em cima da bancada.
- Que estupida que sou. Como fui esquecer duas coisas importantes? Já chega de trabalhar, vou para casa. Amanhã continuo. -  Ela apagou as luzes, trancou a sala dos professores e foi descendo as escadas quando sente algo passando correndo atrás dela. Sua espinha gela e ela soa frio. Ela pega seu celular e tenta ligar para o vigia, o telefone não chega a completar a ligação.
- Maldito celular, tinha que acabar a bateria logo agora. O jeito é bater no portão e torcer para ele abrir.
O barulho de algo arrastando continua e Sílvia nota que está ficando cada vez mais alto. Ela acelera os passos, descendo as escadas ela percebe que “Algo” também acelerou os passos. Ela tenta virar o corredor e olhar o que é. Mas não tem coragem. -  Será que isso é real ou apenas estou delirando?  - Sua mente funcionada a todo vapor - Será que estou tendo outro colapso nervoso?
Sílvia apesar de frequentar igreja desde pequena, nunca fora religiosa. Seu cérebro não conseguia conceber a ideia de que existem coisas sobrenaturais. Ela com a pulsação acelerada respira fundo e tenta raciocinar. – Quem sabe é alguém fazendo alguma brincadeira de mal gosto. Alguém que sabe do meu colapso nervoso e quer fazer um trote. O barulho ia se aproximando, era um andar calmo e sádico, Sílvia se sentia como um prisioneiro esperando o seu carrasco, ela havia sido julgada e condenada. Ela pensou que isso era uma punição por ter convencido Jonas seu amigo de infância a subir em uma árvore para pegar uma maça, ela sabia que o garoto era apaixonado por ela, ele não iria recusar, sua mãe lhe ensinou que um homem apaixonado não recusa um pedido de sua princesa.
O garoto subiu, porem ele não viu que havia um ninho de vespas, assim que ele encostou na maça o galho balançou e as vespas vieram para cima dele, ele se desequilibrou e caiu da árvore batendo a cabeça em uma pedra, morrendo imediatamente. Ela nunca se perdoou por isso. Será o universo cobrando sua dívida?
A “coisa” se aproxima e ela dá um grito abafado e sai correndo. Falta pouco para chegar perto do portão – ela pensou. Ela tropeça e cai torcendo o tornozelo.
- Aiii, meu pé. – Ela tenta se levantar, mas a dor não deixa. Ela sente A Coisa se aproximando. Ela respira fundo e vai se arrastando.
- Falta pouco, minha salvação está quase ali.  - Ela vê o portão com o vigia sentado de costas, é só bater no vidro que ele irá abrir. O vigia estava totalmente alheio a tudo que estava acontecendo, o seu time havia acabado de fazer um gol. Ela sente algo encostando em sua perna, ela sente algo perfurando a pele, ela tem medo de olhar. Ela tenta rastejar mais rápido “Aquilo vai me pegar”, então coloca a mão suja de sangue espalmada no vidro fosco. Era o seu fim.



Postado por Caio Geraldini

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